sexta-feira, 14 de setembro de 2012

A Terra tem um novo recorde de temperatura; mas é menor


(Público - Portugal) Durante várias décadas, a cidade líbia de Al Azizia, 40 quilómetros a sul da capital Trípoli, manteve a fama de ser o ponto mais quente da Terra. A 13 de Setembro de 1922, os termómetros marcaram 58 graus Celsius. Agora, este recorde foi posto em causa, mas não por ter surgido um valor maior. Uma equipa internacional de meteorologistas concluiu que a medição feita há 90 anos, então numa base militar italiana, estava errada.

Com isso, a Organização Meteorológica Mundial (OMM) reconheceu esta quinta-feira que o recorde mundial de temperatura cabe ao segundo colocado, a localidade norte-americana de Greenland Ranch, na Califórnia. Ali – numa região sintomaticamente designada como Vale da Morte – os termómetros chegaram aos 56,7 graus Celsius, no dia 10 de Julho de 1912.

Desde o princípio que se desconfiava da veracidade do recorde de Al Azizia. Já em 1930, um artigo numa revista da Departamento de Meteorologia dos Estados Unidos questionava como era possível tal temperatura num ponto tão próximo do mar. Na década de 1950, o meteorologista italiano Amilcare Fantoli expôs mais dúvidas concretas.

Recentemente, a OMM resolveu tirar a questão definitivamente a limpo. Nos dois últimos anos, especialistas de nove países passaram a pente fino um vasto conjunto de dados e fontes de informação, incluindo o caderno original onde a observação foi anotada, medições históricas de outras localidades próximas a Al Azizia, o equipamento utilizado e as condições do local onde a medição foi feita. “No coração de cada meteorologista e climatologista bate sempre a alma de um detective”, graceja Randy Cerveny, especialista da Universidade do Estado do Arizona e relator da OMM para os extremos meteorológicos, citado num comunicado.

O estudo identificou cinco problemas com a observação de Al Aziza. O aspecto mais importante é que a medição terá sido feita por alguém inexperiente, utilizando um tipo de termómetro na altura já obsoleto, que dava ampla margem para uma leitura errada – conforme se utilizasse a parte de cima, e não a de baixo, de um ponteiro que indicava a temperatura máxima. Na prática, terá havido um erro de sete graus Celsius. Ou seja, naquele dia os líbios de Al Aziza terão sufocado na mesma, mas com apenas 51 graus Celsius.

Observações pontuais podem facilmente revelar falhas, mas para o climatologista Ricardo Trigo, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, o mais grave é haver problemas em séries de dados de temperatura ao longo do tempo. “É mais importante, do ponto de vista climatológico, corrigir as séries longas”, afirma.

Algumas dúvidas têm sido levantadas, nos últimos anos, sobre a consistência das séries utilizadas nos estudos sobre a dimensão e as causas das alterações climáticas. Cientistas sobretudo conotados com os chamados “cépticos” da tese de que o aquecimento global é obra humana têm contestado, por exemplo, a utilização de estações meteorológicas nas cidades – que resultariam em dados exagerados devido ao efeito de ilha de calor – ou a escolha parcial das fontes de observações de temperatura.

Estas dúvidas estiveram na base de um estudo recente – o Berkeley Earth Surface Temperature – que multiplicou por cinco o número de estações meteorológicas consideradas e efectuou diversas combinações diferentes de dados. Os resultados preliminares, divulgados em Julho passado, coincidem com as séries já existentes das agências norte-americanas para o espaço (NASA) e para o oceano e atmosfera (NOAA), e da Universidade de East Anglia, no Reino Unido.

Os resultados corroboram também a correlação entre a subida das temperaturas e o aumento da concentração de dióxido de carbono na atmosfera. “Eu não estava à espera disso, mas como cientista é o meu dever deixar que as evidências mudem a minha opinião”, disse na altura Richard Muller, fundador e director do projecto Berkeley Earth.

A “desclassificação” dos 58 graus Celsius de Al Azizia não vai ter qualquer efeito nas séries históricas. Mas alterou o quadro de honra dos maiores episódios de extremos meteorológicos, mantido pela OMM, e que incluem secas que duraram 14 anos, rajadas de vento com mais de 400 quilómetros por hora e chuvas anuais equivalentes a quase 30 vezes a precipitação em Portugal (ver infografia). A reavaliação do antigo recorde de Al Aziza enfrentou um sério contratempo, quando um dos cientistas envolvidos – o líbio Khalid El Fadli – desapareceu por oito meses, durante a revolta popular que derrubou o ditador Muammar Kadhafi. Quando retomou o contacto com o resto da equipa, o trabalho foi concluído, tendo agora sido publicado online na revista da American Metereological Society.

Um recorde de temperatura, segundo Randy Cerveny, é algo mais do que um atributo a exibir por uma localidade. “Este tipo de dado pode ajudar as cidades em tais ambientes a desenvolver edifícios melhor adaptados a esses extremos”, afirma.
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