quinta-feira, 20 de março de 2014

Estudo contabiliza 148 tempestades fortes em Portugal no século XIX

Projecto envolvendo quatro universidades está a reconstituir o clima do país nos últimos 350 anos a partir do cruzamento de várias fontes de informação. Já há alguns resultados preliminares.


(Público - Portugal) O mau tempo não perdoa. As marés “produziram inundações desastrosas na foz do Douro e nas praias de Ovar”. A água avançou com “força espantosa” sobre a Ericeira, arrombando muros. “Há anos que não chega a tão grande altura”. Em Torres Vedras, “em algumas povoações marítimas têm havido sinistros”. Algumas pessoas foram arrastadas pelas ondas. Na Costa da Caparica, os pescadores ficaram mais de um mês sem sustento “porque o mau tempo não os tem deixado pescar”.

Quem lê estas linhas pensa que se referem a este Inverno de 2013-2014, marcado por sucessivas tempestades e um rasto de estragos pelo país. Mas não: são relatos e notícias do século XIX. Houve pelo menos 148 episódios associados a tempestades de vento, segundo um levantamento realizado por investigadores do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa.

E, em grande medida, são uma cópia do que se continua a assistir no país: inundações nas zonas costeiras, casas destruídas pelo mar, ondas que varrem pessoas, árvores caídas nas cidades, construções afectadas. “As consequências é que podem ser piores, porque a pressão humana agora é maior”, diz Maria João Alcoforado, co-autora do estudo, juntamente com David Marques e António Lopes.

Olhar para as tempestades do século XIX é uma das várias linhas do KlimHist, um projecto envolvendo quatro universidades – de Lisboa, do Porto, de Évora e de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) – que pretende reconstituir o clima em Portugal nos últimos 350 anos. O projecto vai a meio e alguns resultados preliminares são apresentados esta segunda-feira na UTAD.

O ponto de partida é 1645, o ano em que começa um período de actividade solar muito baixa, conhecido como Mínimo de Maunder. Para um passado tão distante, não há senão registos meteorológicos indirectos. Os anéis de crescimento de centenários carvalhos-alvarinhos (Quercus rubor) da Mata Nacional do Buçaco estão a ser analisados para estudar a precipitação desde o século XVII. Descrições feitas por um mercador holandês do século XVIII, Inácio António Henkell, estão a ajudar na reconstituição das cheias do Douro. Há também estudos sobre a evolução da temperatura a partir de furos no solo ou sobre a aplicação de modelos climáticos para simular eventos meteorológicos extremos no passado.

A escala de Franzini
As informações sobre as tempestades de vento no século XIX vêm sobretudo de uma fonte: os registos sistemáticos de Marino Miguel Franzini (1779-1861), um dos pioneiros da estatística e da meteorologia em Portugal. Em 1815, Franzini começou a fazer anotações sobre o clima, a pedido do médico Bernardino Gomes, intrigado com a mortalidade elevada durante os verões. Deixou duas séries de dados, de 1815 a 1826 e de 1836 a 1859, com informações sobre o estado do tempo, a temperatura, o vento, as tempestades.

Os investigadores do projecto KlimHist traçam um paralelo da escala utilizada por Franzini para medir a força do vento com a desenvolvida pelo almirante britânico Francis Beaufort mais ou menos na mesma altura. Beaufort baseou a sua escala no estado “visível” do mar – o tipo e tamanho de vagas, se formavam “carneirinhos” ou se rebentavam, a concentração de aerossóis no ar ou de espuma sobre a água, a visibilidade. Para cada combinação de sinais era atribuído um grau – de 1 a 12 – associado a uma velocidade estimada do vento.

A escala de Beaufort tornou-se muito popular, mas Franzini, embora também servisse na Marinha, não a utilizou. “É estranho que não a conhecesse”, afirma António Lopes, um dos co-autores do estudo. Desenvolveu antes a sua, primeiro com quatro níveis, posteriormente com seis.

Os dados que deixou permitiram traçar, agora, uma primeira cronologia de eventos meteorológicos extremos no século XIX. Juntando outras fontes documentais, como notícias de jornais da época, os investigadores contabilizaram 148 tempestades associadas a ventos fortes nesse período. Três em cada quatro estavam relacionadas com ventos de Sul ou Sudoeste e a maior parte ocorreu nos meses de Inverno (Dezembro, Janeiro e Fevereiro).

É uma primeira aproximação, num trabalho cujo objectivo é ir preenchendo as lacunas de conhecimento do passado climático do país. “Quando se fazem reconstruções de clima na Europa, falta sempre informação de Portugal”, afirma Maria João Alcoforado, que coordena o projecto KlimHist.

Registos históricos de alguns fenómenos naturais dão informações preciosas para trabalhos deste tipo. No Japão, há documentos com as datas precisas da festa da floração das cerejeiras pelo menos desde o século XI. “Isto permitiu reconstituir a temperatura da Primavera ao longo de séculos”, diz Maria João Alcoforado. Na Europa Central e do Norte, registos dos dias em que canais e rios congelaram também dão pistas para compor a meteorologia do passado.

Para o Sul da Europa, são os eventos extremos que mais ficaram na memória através de documentos escritos. “Quando são coisas fortes, sempre aparecem em algum lado”, afirma Alcoforado.

Um exemplo é o das catastróficas tempestades que varreram o país de 3 a 6 de Dezembro de 1739. Relatos eclesiásticos, manuscritos e impressos permitiram reconstituir parte do que aconteceu nesses dias em vários pontos do país – Porto, Coimbra, Santarém, Lisboa, Évora, Montemor-o-Novo e Cuba.

Uma fonte essencial são dois poemas que registam em 1740, em verso, a tragédia do ano anterior. O cónego Martinho Lopes de Morais Alão, por exemplo, escreveu sobre o Porto: “Corria o Douro taõ arrebatado/Taõ rápido, cruel, e taõ valente/Que parecia vinha declarado/Inimigo de todo o ser vivente”. E sobre Coimbra, escreveu Manoel José Correa e Alvarenga: “Vay o Monda correndo arrebatado/Aqui cazas, alli plantas quebrando/Se a huns leva as alfayas desbocado/Da mesma vida a outros vay privando”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário